À espera dos bárbaros
terça-feira, dezembro 14, 2004
  Memória e outras coisas.
1. Na minha infância havia livros, num baú e num sótão, como mandam as regras, que eu gostava de folhear e de ler, sobretudo quando as amigdalites me obrigavam a ficar de cama. Um dos meus preferidos era uma colecção de revistas Em Guarda e Vitória, distribuídas, suponho, pela embaixada dos EUA durante a II Guerra Mundial. Essa colecção, encadernada em dois volumes, ainda a conservo. Mas havia um outro, um livro de Calembours, versalhada que usava e abusava dos trocadilhos, a que eu perdi o rasto. Tenho-me lembrado dele nas últimas semanas porque um dos calembours, o mais visitado porque me fazia rir imenso, se chamava «Ora o Lopes...»
2. Tenho ouvido falar na televisão, ultimamente, os industriais do humor nacional. Porque o humor agora é uma indústria. Assim que os ouço advogar a gracinha como modo de «estar na vida» desligo ou vou-me embora. Um senhor, grande industrial do sector, aponta mesmo, como exemplo, bom exemplo, as gracinhas que os apresentadores de telejornais tanto gostam de dizer. Uma senhora recomendou até a graça distribuída ao domicílio, para gáudio dos trabalhadores e felicidade das famílias. Então não se vive melhor se estivermos bem-dispostos?
A gracinha, a graçola, a obrigação de ser engraçado, de ser brejeiro, de fazer trocadilhos, de fazer esgares grotescos, é das coisas mais lamentáveis que hoje se apoderaram da vida portuguesa. O humor ostensivo tornou-se omnipresente, intromete-se em tudo e a toda a hora. O humor passou a ser tomado a sério. É cansativo, insuportável. Sobretudo por não ter, em grande parte dos casos, graça nenhuma. Que digo!, estou a ser muito severo, então não tem tanta graça... eu é que não tenho sentido de humor.
Ah!, mas eu vivo na lua!, o humor mudou, os públicos mudaram, as situações mudaram.... como diria o grande actor Manuel Santos Carvalho (texto de Gervásio Lobato) em O Comissário de Polícia: tudo corre, correm os rios, correm as lebres.... A subtileza mudou tanto, que desapareceu.
Resumindo: a banalização do humor tira graça ao «humor», vulgariza-o.
3. Há tempos levei ao Teatro da Trindade uma jovem que nunca tinha ido ao teatro. Eu próprio não ia ao teatro há anos (nem quero pensar no que tenho perdido...). Escolhi uma coisa que se adequasse à ocasião: leve e com um toque cultural...
Na primeira fila, um friso de senhoras loiras e cheirosas, tilintantes, vestidíssimas. Uma delas girou o pescoço inspeccionando tudo à sua volta, e disse: «Ah!, um teatro barroco, é lindo!» Foi a coisa mais engraçada que aconteceu nessa noite. Mas não era isto que eu queria dizer (ah!, a velha técnica cronística de Nelson Rodrigues), o que realmente me deixou angustiado foi observar (e ouvir!!!) as enorme gargalhadas de algumas pessoas. Isto é: a completa inadequação, que digo?, a desproporção enormíssima entre a graça e a reacção provocada. Um trocadilho, uma ironia que mereceria um sorriso no caso de ser uma coisa bem vista, bem apanhada, é recebida com um riso estrondoso, patético, pateta mesmo.
 
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