À espera dos bárbaros
terça-feira, novembro 30, 2004
  Sérgio Sant'Anna.
Como ainda não li nada do senhor, prometo a mim próprio que um dia destes vou zapear um dos seus livros.
A entrevista de Paulo Celso Pereira, que se segue, saíu no Jornal do Brasil de hoje.


Sérgio Sant'anna é a estrela da vez. Com seu último livro, O vôo da madrugada, ele arrematou os três principais prêmios literários do país. Com pouco mais de 3 mil exemplares vendidos desde que foi lançado, em 2003, o livro ganhou o Jabuti e o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte de melhor obra de contos. Na semana passada, recebeu o segundo lugar no Prêmio Portugal Telecom, perdendo no desempate para o livro de poesia Macau, de Paulo Henriques Britto. Com O vôo da madrugada, o escritor carioca de 63 anos, que soma agora quatro Jabutis, não deixa dúvidas a respeito de sua posição entre os maiores contistas do país. Na sala do apartamento onde mora há 26 anos, em Laranjeiras, Sérgio conversou durante mais de uma hora sobre as premiações. Apesar de estar feliz com o reconhecimento, é cauteloso: ''É legal ganhar, mas não é o prêmio que faz o escritor''.

- Como você tem recebido a série de premiações de O vôo da madrugada ?
- Quando lancei o livro, não sabia o que pensar dele, pois ele tem certas diferenças com a minha obra. Apesar de ter alguns contos experimentais, o livro desce muito a problemas fortes e densos da sensibilidade humana. Não sabia como seria recebido. Mais tarde, percebi que estava tocando muito os leitores, e não só a crítica, que, em geral, foi positiva. Só aí vi que o livro tinha alcançado um resultado.

- Você acha que as pessoas supervalorizam os prêmios?
- Prêmio é uma coisa relativa. Não se pode julgar literatura por prêmios. É legal ganhar, ficamos contentes, mas não é o prêmio que faz o escritor. O escritor fica satisfeito, ninguém acha ruim ganhar R$ 30 mil (valor do prêmio Portugal Telecom), mas isso não quer dizer que sempre sejam os melhores os premiados. No caso de O vôo da madrugada, fico satisfeito porque, com três prêmios, é sinal de que muita gente viu que o livro tinha um determinado valor.

- Como avalia o resultado do Portugal Telecom?
- Eu só li o livro do Paulo Henriques depois, e achei-o de alto nível. Agora, vou ser sincero, se eu fosse do júri votaria no Não poemas, do Augusto de Campos, para primeiro lugar. E no meu em segundo (risos). Acho que o Augusto deveria ganhar, não só pelo livro, mas por toda a obra dele, por tudo o que ele representa. Ele sofreu a rejeição ao concretismo. Embora este já seja um livro neoconcretista, com muita subjetividade, é bem interessante.

- Você gosta de ver provocação no texto?
- Não gosto de arte bem comportada. Arte que é arte tem que ser provocativa. Arte tem que mexer com a sua cabeça. Acho saudável a atitude desse pessoal que faz parte dos livros Geração 90. É muito legal escrever um texto que balança as pessoas. Mas não sei se O vôo da madrugada é provocador assim.

- E como o público reage?
- No Brasil, e principalmente no Rio, vivemos na cultura do ''tudo bem''. Tudo é piadinha e crônica de jornal. O vôo da madrugada é um livro que mexe com depressão e morte. Acho isso provocador sim. São coisas que todas as pessoas têm dentro de si, sentem e sabem. Mas, aqui no Brasil, e sobretudo no Rio, parece que há uma filosofia de fingir que essas coisas não existem. Tanto é que se você olhar na lista dos mais vendidos, verá que todo mundo quer ler o cronista engraçado, a piada. Não que não goste de humor, eu gosto, mas prefiro um humor elaborado.

- Há um excesso de livros de alta vendagem e qualidade duvidosa?
- O best-seller vai sempre existir, pois agrada a muita gente. Mas também vai existir um espaço para uma literatura como a minha. Vendo, em média, 5 mil exemplares de cada livro que lanço. O vôo da madrugada levou um ano para esgotar a primeira edição de 3 mil, mas acho isso natural, porque faço literatura mesmo. Para um cara comprar o meu livro tem que gostar de literatura de uma determinada densidade, tem que gostar da linguagem. Não vou esperar que uma pessoa que está procurando só entretenimento vá ler meu livro.

- Qual foi a recepção do mercado?
- Saiu uma edição portuguesa e sairá agora uma espanhola. Para um livro de contos é uma carreira boa. Acho bom vender 3 mil exemplares. O escritor sofre uma concorrência fortíssima, ele disputa com todos os autores, vivos e mortos. Embora esteja havendo esse estardalhaço em torno do conto, o que vende muito são essas antologias, tipo 100 melhores contos de alguma coisa, isso vende que nem banana. Os livros de conto de um só autor não. Esses vendem muito menos do que os romances.

- Ainda se sente influenciado?
- Não me sinto mais influenciado. Pode parecer arrogante mas não é. Li muita gente que se misturou tanto dentro de mim, que, felizmente, acho que encontrei meu estilo próprio, a linguagem é minha. Sai de dentro de mim e se a influência existe, não é mais consciente. O ideal de todo escritor é procurar mesmo o seu espaço, a sua linguagem, sua voz própria. Às vezes, vemos no Brasil pessoas que lançam livros que parecem Rubem Fonseca ou Clarice Lispector. Não acho isso desejável.

- Como desenvolve seu conto?
- O conto, em geral, é muito mais artesanal, busca muito mais a linguagem do que os romances. Em geral, os romancistas são menos pesquisadores de linguagem. Os contistas se aproximam um pouco do poeta. Posso dizer que, no meu caso, a linguagem tem uma densidade poética. É como se eu estivesse compondo internamente uma melodia. Não gosto do termo prosa-poética porque tem muita sub-literatura que fala assim. Meu intuito não é enfeitar. É uma melodia rigorosa, então, em vez de prosa-poética, prefiro a palavra composição. Meus contos são composições.

- Tem publicação em vista?
- Não tenho a menor vontade de botar na rua um livro por ano e cansar as pessoas. Acho perigoso, porque às vezes os livros pouco se diferenciam uns dos outros. É bom o escritor dar um tempo entre um livro e outro. Uma característica minha é que os livros não se pareçam.

- Na Festa Literária Internacional de Paraty, sua declaração a respeito do tamanho excessivo dos romances causou polêmica.
- Falei em Paraty que a maioria dos romances tem pedaços excessivos e deu uma celeuma desgraçada. Falei que estava zapeando livros, porque, de fato, muitas vezes eu abro o romance para ler, chego no meio e penso que já li o que me interessava. Como são muitos livros, às vezes eu paro no meio para pegar um outro. Muitos romances de nomes sagrados são excessivos. É muita coisa para ler, então leio um pedaço de um, um pedaço de outro... É muito parecido com zapear na televisão: você pega um terço de um filme, cinco minutos de outro, e é legal.
 
  Efeméride. Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!

excerto de Lisbon Revisited (1923), de Álvaro de Campos
 
segunda-feira, novembro 29, 2004
  As santanadas.
Uma dos aspectos que revela, para mim, o político sem fôlego de estadista, mais imediatamente do que tudo o resto, são os gestos que acompanham a sua retórica. Explico-me: depois de cada tirada (oratória, entenda-se) supostamente envenenada, o primeiro-ministro prolonga-a ou conclui-a com um trejeito, uma careta, um olhar fadista que quer dizer coisas como «toma lá que já almoçastes» (assim mesmo, com ésse no fim), «agora assoa-te a este guardanapo», «aguenta-te à bronca!» ou vulgaridades do género. Por vezes, o trejeito clama por um gesto acompanhante, como o de espetar certo dedo («toma!»). Foi assim no (pouco) que observei dos seus discursos no Congresso, foi assim ontem no discurso das incubadoras. E, para mim, isso bastaria.
 
 

Fortuna pessoal.
 
  Última hora Segundo as agências noticiosas, Sócrates será recebido hoje pelo Pai Natal.
 
domingo, novembro 28, 2004
  Domingo Desportivo. Sporting Clube de Chave(s) 4 -- Grupo Desportivo de Pirescoxe 2

Estrela das Incubadoras 0 -- União dos Irmãos Mais Velhos 5

Académico de Belém 0 -- Resto do País 0


Acompanhar o campeonato aqui, ou aqui.
 
 
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sexta-feira, novembro 26, 2004
  Ora aí está!
Há dias, atrevia-me a recomendar o livro de Mega Ferreira sobre Roma. Nessa altura ainda só tinha lido o primeiro capítulo. Hoje, no Diário de Notícias o livro é abordado por Pedro Mexia. E muito bem. Gostaria, apesar disso, de voltar ao assunto.
 
  Um novo poema de Seamus Heaney. «Testimony: The Ajax Incident»
adapted from Sophocles, Ajax

“Lamps had gone out, the late sentries dozed,
When something just came over him.
He rose And rigged for action, lifted down
His two-edged slashing sword, a bedside weapon
He kept like a second bedmate, then slipped outside
Far more nimbly than you’d have expected
For a man his size, with that night-mirroring
Blade in hand, aloft. Anything
I said meant nothing to him, mere
Wife-babble, ignored the same as ever,
Even though this time there was no attack
Being sounded, no command.

Then he was back,
In through the tent door like a conquering drover
With his captives on a rope: bull calf, heifer,
Milk cows, rams and ewes, the very sheepdogs.
How long he’d rampaged through their pens and paddocks
Or why he was herding them I couldn’t tell
Until the butchering started. I can still
Hear the slosh of innards, piss and muck.
Some he beheaded with a single stroke
Down through the neck bone, some he wrestled flat,
Legs and belly up, and cut their throats,
For all the spurted dung and kicks and horn-toss.
Some that he tied and tortured like prisoners
Slit by slit, hamstring and lip and ear,
Just bled to death, hoofs beating at a chair.

At last there came a lull, then a tirade
Against those chiefs he thought he’d left for dead
On the floor behind him, once comrades, men of honour,
But now reviled; he stood by the tent door
Bellowing hate and havoc and their names.
Then, bloody-spoored and raving, in he comes,
Returning to his senses bit by bit,
And starts to butt the tent-pole, going quiet
As he climbs and slips and struggles through a mess
Of entrails splattered and opened carcasses.
And so for a long while he just lay there dumb,
Dragging his nails and fingers for a comb
Through his slathered hair, breathing like a beast
Slack-mouthed and winded. But came round at last,
Risen off all fours to overbear,
Turning on me to explain the massacre,
So I told him what I think he knew he’d done.

Then Ajax raised his voice in lamentation,
At bay now and in disproof of his rule
That warriors didn’t weep, they weren’t old women –
But soon his head-back, harrowing wail
Turned to the long deep moaning of a bull.

Slumped, slow motioned, he is in there still,
Ensconced on a pile of slaughtered meat and offal,
Lowing to himself. Something gathers head
And is going to happen. We must pay him heed.
Nothing is over, only overdue.
A friend should go to him. One, friends, of you.”

in Newsletter/Times Literary Supplement/25 de Novembro de 2004
 
quinta-feira, novembro 25, 2004
  Agradecimento.
Agradeço a referência no Fumaças.
Deixo aos outros a contabilidade das santanadas, a que, tarde ou cedo, se seguirão as socratadas.
Prefiro as histórias exemplares. Esta, por exemplo, que talvez lhe interesse.
Certo vinho de uma casa vinícola da zona de Palmela, só produzido em anos especiais dada a idade das vinhas que estão na sua origem e a duração do estágio, foi justamente louvado como sendo de excepcional qualidade. Justamente louvado. É um grande vinho, do qual me resta apenas uma garrafa... O seu preço era bem razoável, creio que, comprado na «fonte», rondava os 9 euros.
Ansiava-se pelo ano em que a produção se repetisse. O ano é este. Já o provei e, sendo bom, está longe da excepcionalidade do outro. Até aqui, nenhuma novidade maior. A «história exemplar» é esta: é que o vinho vai ser comercializado, a 20 euros na origem, com menos 14 meses de estágio do que o anterior. Motivo: a pressão comercial, a urgência dos intermediários e a ânsia dos consumidores.
Sem que isto signifique menor apreço pela (não-)referida casa, julgo que esta é uma daquelas histórias que mostram como, neste tempo, tudo se apressa em direcção à mediocridade, à perda, ao desatino, ao afundamento. Para mim, isto é mais importante, mais fundamental e mais significativo do que Gomes da Silva ser ministro disto ou daquilo. Embora a possibilidade de um Gomes da Silva ser ministro seja, em si mesma, um sinal de degradação, a mediocridade e a nulidade na política parecem-me uma novidade velha.
 
  Para ler. Goste-se mais ou menos da criatura, este texto vale pela enumeração das questões.
 
  O óbvio e o obtuso. Hoje, no Público, dão-se várias razões extraordinárias para não ir ao Alvaláxia. Todas elas me parecem obtusas, sobretudo porque não é referida a razão óbvia.
 
  Eu diria de outro modo.
«Para mim, talvez tudo seja mais simples: um imenso vazio de poder, o desaparecimento da autenticidade e a ocupação da política pelas intrigas do doméstico».
Sim, mas eu preferiria falar em inconsistência: falta de densidade e de convicção. Para usar uma palavra que se usava noutros tempos: rapaziadas.
 
quarta-feira, novembro 24, 2004
  Ideia. Não seria de explorar a hipótese de um município do interior se candidatar a ficar com a Feira Popular, a troco de alguns benefícios, sei lá, duas ou três rotundas, fontanários, repuxos?
 
  Terei ouvido bem? A Feira Popular vai para a zona do Jardim do Tabaco??? E porque não para o Terreiro do Paço?, era uma ideia para «animar» a zona... Este país não existe, nem aqui! Ou, segundo outros, não existe senão aqui.
 
terça-feira, novembro 23, 2004
  Aiiiii !!!!
Vou fugir -- mais do que o costume --dos noticiários televisivos de hoje. Vamos decerto saber tudo o que queremos e o que não queremos sobre a questão de Canas de Senhorim. Apesar da qualidade felliniana de algumas personagens, a (minha) vergonha sobrepor-se-á a tudo.
 
segunda-feira, novembro 22, 2004
  Exactamente.
Registo a observação do Aviz sobre o facto, que bem se pode aplicar à totalidade da vida (política) portuguesa, de que tudo é avulso e medíocre. Das coisas grandes às mais pequenas. Do excesso de passionalidade à esperteza manhosa, do gosto de bater no ceguinho à benevolência espapassada e mole. Tudo sem consequência, em meio de acabar, ou mesmo em meio de começar. A pergunta do referendo não é mais do que a expressão triste de tudo isso. Há tempos, no parque de estacionamento de um centro comercial, mostrava aos meus filhos como as pessoas (tantas pessoas!) eliminam ou subvertem todas as regras para arranjar um lugar, para chegarem primeiro. Mostrava-lhes que é nos comportamentos mais quotidianos e automáticos que se vê o estado de uma sociedade, o seu grau de desenvolvimento. E dizia-lhes que temos duas opções: ou fazer como eles, ou não fazer, mesmo que seja preciso ir estacionar noutro parque. Dizia-lhes que é preciso conservar a dignidade, pela indignação e, no meu caso, sobretudo pela distância. Dizia-lhes que resistir é isso mesmo. No referendo, vou resistir.
 
  Nutricionismo.
Na sexta-feira, jantei com a família num restaurante muito fora de Lisboa. Na ementa brilhavam os Pezinhos de Coentrada, as Migas com Carne de Porco, Burras (queixadas de porco) e outras especialidades. Enquanto esperámos, fomos petiscando torresmos, azeitonas, queijo, acompanhados por bom tinto e boa conversa. Uma mesa perto de nós congregava Isabel do Carmo (endocrinologista, nutricionista, ex-«sócia» fundadora das saudosas Brigadas Revolucionárias) e os socialistas locais. Ao que parece, foram dali para uma sessão pública sobre a alimentação das crianças.
 
sexta-feira, novembro 19, 2004
 
Hoje estarei no lugar onde isto existe (com a devida vénia a Pedro Dias, que não conheço). AR PURO, como se diria no Abrupto. Posted by Hello
 
  Sinais de fumo.
No Público de hoje aparece uma crónica com o título «Língua» (a propósito de um filme brasileiro que também se chama assim), assinado pelo «comissário» da Conferência «Língua Portuguesa: Presente e Futuro» que decorre na Gulbenkian nos dias 6 e 7 de Dezembro. Neste último âmbito, escreve o comissário:
«Partimos de duas verificações convergentes. Por um lado, considera-se que há hoje uma diminuição da leitura, ou pelos menos da leitura de formas não meramente instrumentais da língua (é a questão da crise dos grandes leitores, do predomínio do sonoro sobre o visual, da desvalorização do culto do livro). Por outro, uma determinada tradição que fazia das línguas fundamentos de formação humanística e reforços da ideia de nação tende hoje a dissolver-se. Inicialmente, considerou-se que estaríamos perante uma vitória da imagem sobre a palavra – e que assistiríamos nos nossos dias ao aparecimento de uma cultura pós-simbólica. A análise mais recente reconhece que a Internet ou as mensagens telefónicas correspondem à persistência de um discurso verbal, embora ele se transforme, reduza e simplifique segundo modalidades inesperadas. Isto leva-nos a tentar evitar um tom demasiado nostálgico em relação a formas anteriores do exercício das comunicações verbais e a tentar criar estratégias mais avançadas e ofensivas em relação às formas actuais de comunicação através da palavra.”
Por mim, persisto no discurso verbal, mas, contra a «análise mais recente», declaro que sou nostálgico de «formas anteriores do exercício das comunicações verbais», quando eram menos reduzidas e simplificadas.
Tudo isto, somado às notícias que chegam do Brasil, são sinais. Prepara-se a ratificação do acordo ortográfico. Com pezinhos de lã e o necessário assentimento de especialistas insuspeitos. Estes recolherão algumas críticas de outros especialistas, igualmente insuspeitos, e assumirão o ar de quem se sacrifica pelas «estratégias mais avançadas». O PM assinará o papel e recolherá os louros.
 
  Apaches.
A história dos Apaches está a ser reescrita. Desta vez, Jerónimo vai ser eleito pelos peles-vermelhas. Este guiará depois a tribo até à pequena reserva, nas montanhas, onde viverão da nostalgia das pradarias e dos combates com os brancos, mas esta parte já é igual à história conhecida.
 
  Sociólogos, literatura e outros temas.
«Os sociólogos, como ensinava meu mestre Unamuno, são os sujeitos que não sabem nada, e quando sabem, sabem a posteriori»: diz Gerardo Mello Mourão, poeta brasileiro que admiro, numa entrevista (já antiga) que vale a pena ler e onde também diz: «Creio que a palavra "literatura" também está desgastada. Não me pergunte por que, pois a resposta seria longa e cruel.»
 
quinta-feira, novembro 18, 2004
  Regresso a Roma. É possível recomendar um livro sem o ter lido? É.
Roma, Exercícios de Reconhecimento, de António Mega Ferreira (Assírio & Alvim).
Além do gosto pela «geografia afectiva» dos lugares, partilho com o autor o fascínio pela cidade (que ele decerto conhece muito melhor). Para mais é bem escrito, coisa cada vez mais rara.
 
  Diz quem leu o relatório sobre a Casa do Gaiato
há cerca de um mês, que o dito é profundamente irritante pelo tom, por aquilo que insinua sem prova e pelo que revela sobre a ideologia e a mente de quem o redigiu. E não estão em causa as coisas que de facto por lá se passam. Ver comentários também no Blasfémias e no Picuinhices.
 
  Um conto de Ernst Jünger
No vaivém espacial de transporte — tinhamos feito um voo bastante longo. Americanos, Europeus de diversas nacionalidades e quase metade de Tonquineses e Anamitas, companheiros de pequena estatura, inteligentes e agradáveis — se se quiser, dito grosseiramente, Brancos e Amarelos. Professores e jornalistas na força da idade — a excursão não tinha sido verdadeiramente perigosa, apesar de não ser desprovida de riscos; não tinhamos nem mulheres nem crianças a bordo.
Não estávamos já muito longe do desembarque, da aterragem melhor dizendo. Um milhão de milhas, perto disso. É espantoso a que ponto se distinguem com precisão, neste género de aparelho, todos os ruídos, sobretudo os de natureza técnica, mesmo que sejam extremamente débeis. Tudo isso se passa no inconsciente e acompanha o funcionamento automático, embora reencontremos a lucidez total à menor dissonância.
Algo parecia funcionar mal, vários sinais luminosos piscavam, minúsculos, e por cima de tudo um zumbido. Um engenheiro chegou lá de trás e foi ao cockpit — ainda não o tinha visto após o início do voo. Depois chamaram a tripulação — o médico, as hospedeiras, os vigilantes desapareceram uns após os outros na cabina de pilotagem.
Era inquietante. Imediatamente antes, a atmosfera era mais ensonada do que ruidosa; daí em diante o silêncio tornou-se opressivo. A situação era pouco habitual sem ser excepcional. Quem embarca em qualquer veículo sabe que corre riscos, mesmo que o faça todos os dias. Noutro tempo oferecia-se um sacrifício a Neptuno antes de uma viagem marítima, aqui o caso era mais com Apolo.
A situação não tinha novidade para mim; tinha-a já vivido diversas vezes. Era a primeira grande divisão depois de uma ameaça de perigo. Os iniciados retiram-se. Antes do assalto, os oficiais reunem--se e discutem a situação, em local coberto ou numa colina. O cirurgião faz o mesmo com a sua equipa, antes de uma operação. O doente jaz, à parte. O que se discutia ali não podia, pois, senão angustiar. Aqui, eram os técnicos: o capitão e a sua tripulação. Eram eles os iniciados e debatiam a nossa sorte.
O simples soldado, o paciente, o passageiro, esperam o veredicto dos iniciados com uma inquietação compreensível por múltiplas razões. Em primeiro lugar, está-se à espera de revelações sobre a natureza e a dimensão do perigo. Tal implica confiança. Se ela não existe, põe-se imediatamente o comando em questão. O iniciado é também o que sabe e pode; mesmo em relação ao técnico, acreditamos que tenha uma relação mais íntima com o destino.
É preciso não escamotear um terceiro elemento: o iniciado poderia usar o seu conhecimento directamente em seu proveito, em detrimento dos profanos. Para voltar ao nosso caso, também aqui isso seria possível.
Entretanto, o silêncio tinha-se tornado total. Pareciamos dormir ou deslocarmo-nos sem barulho; o ar não era tão puro como pouco antes. Era preciso acabar com o fumo.
Muitas coisas nos passam pela cabeça durante este género de espera. Depressa nos tornamos mais pessimistas. Que se poderia esperar ainda em caso de avaria ou mesmo de black-out? Rapidamente faria muito frio. Seriamos, em seguida, satelizados no sistema como um monumento congelado ao progresso. Ou então aproximar-nos-iamos de novo da terra e converter-nos-iamos em calor dissipado na atmosfera; seria o retorno aos átomos, bem preferível à entropia, semelhante à morte voluntária de Peregrinus Proteus.
De qualquer modo, restavam-nos ainda algumas hipóteses. Como a baleia a sua cria, o transportador abrigava no seu seio um engenho de pequenas dimensões. Podiamos soltá-lo como a um barco de salvamento. Para dizer a verdade, éramos muito mais numerosos do que é hábito, estávamos mesmo em excesso. É preciso com frequência recorrer a isso nas viagens de lazer ou mesmo de exploração. É imprudente, mas a afluência é demasiado grande.
Daí vinha a minha inquietação. Em caso de abandono da nave, metade dos seus ocupantes, talvez mesmo mais, seria constrangida a ficar. Sem dúvida nenhuma, os técnicos que conferenciavam na cabina de pilotagem imaginavam-no também, e decerto mais amargamente do que nós. Sabe-se de catástrofes nas quais o capitão e a sua tripulação se escaparam sorrateiramente antes de o navio submergir com os passageiros.
Põe-se pois a questão da confiança — uma questão que diz respeito a algo mais importante do que cada um sabe e pode. Neste aspecto, nada havia a temer; Hartung era um capitão da velha escola, um daqueles que permanecem a bordo até à última, ou que sucubem juntamente com o seu navio.
Ei-lo que saía. Como me tinha cruzado com ele diversas vezes, percebi de imediato qual era a situação. Tinhamos de abandonar a nave. O imediato tomava o comando da nave de salvamento; Hartung atribuira-lhe o pessoal necessário. Ele próprio permaneceria no seu posto com o resto da tripulação. No que dizia respeito aos passageiros, não tinham mais do que se entender entre eles. Comunicou-nos os pesos de acordo com os cálculos dos aparelhos — para a tripulação, para os passageiros e para o material indispensável.
Éramos em número demasiadamente elevado para que se pudessem esperar resultados de uma negociação geral — deveríamos confiar a nossa sorte a um comité de sábios. Na sala de jantar grande, repartiamo-nos por mesas de doze e tinhamos já travado conhecimento. Hartung propôs que cada mesa delegasse um homem de confiança para deliberar na sala de fumo. Pareceu-nos justo; o número de votos ficou assim reduzido a vinte e cinco.
A deliberação prolongou-se durante muito tempo e a luz a bordo estava já fraca quando o responsável nos comunicou o resultado. Este correspondia manifestamente à vontade de salvar o máximo de cabeças, e a escolha do comité recaíra numa espécie de ovo de Colombo cuja evidência impressionava à primeira vista. Ir-nos-iam pesar e introduzir no engenho começando pelo mais leve até que fosse atingido o peso total que nos fora prescrito.
Eu teria preferido que se tirasse à sorte, como já se praticava na Idade Média junto ao cadafalso. Mas uma decisão é uma decisão e não havia nada a objectar contra esta. Sobretudo no que me dizia respeito, já que estava em convalescença e tinha emagrecido muito. Com efeito, assim que as pesagens começaram, encontrei-me entre os happy few, se assim posso dizer.
Além do mais, o que o resultado tinha de espantoso era que os pequenos Asiáticos se foram colocar, um após outro, do lado bom, como no Julgamento Final, até estarem reunidos quase por completo, à excepção de alguns pesos pesados, como não faltam também na raça deles.
Porventura era um acaso desprovido de intenção. Se houvesse entre eles um Maquiavel, tinha jogado magnificamente. Se como colegas especialistas nos tinhamos entendido bem, surgia agora uma divergência. A harmonia estava ameaçada — tanto mais que a respiração se tornava difícil. Ouvi perto de mim a voz do médico: «Se houvesse crianças a bordo, talvez a pesagem tivesse um sentido!» Só Don Capisco tinha conservado o humor: «Enfim, conseguimos atingir a felicidade pelo maior número.»
A atmosfera não se prestava nada a este género de brincadeiras. Tornava-se cada vez mais desagradável, leia-se primitiva. Censuravam-se mutuamente a côr da pele. Porém, o ambiente era tão sombrio que não era já possível discerni-la. Tinham-se formado dois partidos que se enfrentavam ameaçadoramente, separados pela tripulação para a qual esta evolução manifestamente agradava. Depois de todas aquelas deliberações e cálculos, era o momento de aceder à saída de emergência; os primeiros tinham já posto o cinto; as luzes apagaram-se.
Ir-me-eis perguntar como foi que consegui sair. Bem!, de uma maneira que há muito deu provas: acordando. Certo, mas onde? — a questão permanece em aberto.

Tradução feita a partir da versão francesa de Julien Hervier (Rêves, Fata Morgana, 1999)
 
quarta-feira, novembro 17, 2004
  Sauvons le bon goût. Dossiê do Figaro/Magazine sobre «le pays des papilles», sem esquecer a passagem sobre «le malaise des aliments santé». A ler aqui.
 
  Para ilustração da Inês.
INÊS: O NOME

Inês é nome que se pronuncia
Para instigar ou seduzir prodígios,
é senha que as sibilas balbuciam
ao decifrar enigmas cabalísticos.
É mais do que isto: códice da língua,
raiz da fala, bulbo do lirismo.
É gênese da raça e do suplício,
arché do amor e substância prima.
É mais ainda: tálamo do espírito,
dessa alquimia de morrer em vida
e retornar na antítese do epílogo.
E quem disser que Inês é apenas mito
-- mente. E faz dela inútil pergaminho.
E da poesia um animal sem vísceras.

Ivan Junqueira, A Rainha Arcaica (1979)
 
  Para ler. Entrevista (várias páginas) com Paulo Henriques Britto, no Jornal do Brasil
 
  Que bom! Vamos passar a produzir em massa meninos bem comportados. Meninos e meninas. Meninos e meninas que não fazem chichi nas calças, não põem nódoas e levantam sempre o dedo quando o professor faz uma pergunta. E estão sempre contentes, cheios de energia. Era disto que o país precisava.
 
  Acordei a pensar nisto Posted by Hello
 
  Aí estão!!!! e estão apenas no princípio...
 
terça-feira, novembro 16, 2004
 
Uma obra de arte contemporânea Posted by Hello 
 
Hans Kristian Jorgensen, um dos grandes artistas do nosso tempo Posted by Hello 
  Prémio Portugal Telecom Brasil 2004 (com a devida vénia ao Gávea).

BIODIVERSIDADE

Há maneiras mais fáceis de se expor ao ridículo,
que não requerem prática, oficina, suor.
Maneiras mais simpáticas de pagar mico
e dizer olha eu aqui, sou único, me amem por favor.

Porém há quem se preste a esse papel esdrúxulo,
como há quem não se vexe de ler e decifrar
essas palavras bestas estrebuchando inúteis,
cágados com as quatro patas viradas pro ar.

Então essa fala esquisita, aparentemente anárquica,
de repente é mais que isso, é uma voz, talvez,
do outro lado da linha formigando de estática,
dizendo algo mais que testando, testando, um dois três,

câmbio? Quem sabe esses cascos invertidos,
incapazes de reassumir a posição natural,
não são na verdade uma outra forma de vida,
tipo um ramo alternativo do reino animal?

Paulo Henriques de Britto, Macau. Companhia das Letras.
 
 
Eles avançam rapidamente de estatísticas em riste. Mais tarde ou mais cedo, esmagarão todos os vícios, proibir-nos-ão mesmo as mais solitárias derivas. Seremos belos e saudáveis. Obrigar-nos-ão a usar aparelhos nos dentes. Será apenas o princípio. Depois, começarão a generalizar os aparelhos para o cérebro, que estão ainda em fase de experimentação. Serão proibidas ideias com mais de 10% de gordura. Falstaff será internado numa clínica da qual não mais sairá. O grande negócio clandestino será o do sal. Existirão normas apertadas para o conteúdo dos livros e do cinema. Os grandes escândalos do futuro dirão respeito a figuras públicas apanhadas a fumar na casa de banho. Sem o que fazer depois da abolição total e completa de todos os vícios estatisticamente graves, cardiologistas serão futuros ministros da Justiça, nutricionistas ocuparão a pasta das Finanças. Unidades hospitalares serão responsáveis por golpes de estado, por revoluções de bata branca. O futuro apresenta-se brilhante e asséptico. O bem comum triunfará.
Espero já cá não estar quando polirem o mundo por completo. Ou o que dele restar...
 
  Livros Na indústria dos livros, pensar que são as capas que vendem os livros equivale normalmente a reconhecer que o alvo é sobretudo um público iletrado. Porém, ganharão sempre os que venderem títulos e autores. E os que souberem usar o bom gosto como forma de sedução do objecto.
 
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