À espera dos bárbaros
domingo, dezembro 26, 2004
  O português, outra vez. Dez notas avulsas.
1. No Público de hoje. Lá vem o óbvio ululante rol da caterva de erros que se tornaram comuns, lá se defende o «regresso» à norma e ao latim. Por mim tudo bem. Óptimo mesmo. Mas conseguir isso através de um «ensino inovador»? Soa a mais do mesmo.
2. A questão da língua, como a do próprio ensino, não tem solução. Estou do lado dos pessimistas.
3. Sei alguma coisa de história da língua, conheço os fenómenos evolutivos das línguas, mas o argumento histórico, tal como os linguistas o costumam apresentar, não me convence inteiramente, como não convence o relativismo da «teoria do saldo»: entre perdas e ganhos, o balanço é sempre positivo, o que se ganha é sempre mais do que o que se perde. Isto é, não há motivo para nostalgias.
4. As línguas têm certamente uma grande capacidade de «regeneração». O que significa que a norma se altera de tempos a tempos para se ajustar às imposições do uso. Mas a condição essencial para que a norma se altere é que ela exista bem definida e estável. O que hoje acontece é que, em termos de ensino da língua e do conteúdo das gramáticas, há uma série de aspectos sobre os quais parece não existir qualquer definição normativa. Pelo contrário, o que transparece é a confusão. O problema já não é tanto regressar à norma, é saber do que estamos a falar quando falamos de norma...
5. Os linguistas, os portugueses em primeiro lugar, têm, a maior parte das vezes, uma «visão de dentro», muito condicionada. Se, perante um certo fenómeno, percebem que um certo número de falantes optam pela solução A e outros pela solução B, ou que transitam entre as duas soluções, o linguista sente-se impotente para determinar se há uma mais certa do que a outra, uma vez que elas coexistem. É ainda o triunfo do «descritivo» sobre o «normativo».
6. É esta situação que justifica a existência de serviços de consulta linguística e gramatical como o ciberdúvidas.
7. É claro que a «culpa» não é do sms ou da internet. Esses meios apenas reflectem, de modo particular, o problema.
8. Por razões que não vêm ao caso, tenho lido textos e trabalhos de alunos adiantados num curso da área das «ciências» humanas, de uma universidade conceituada. Se não conhecesse outras situações, isso bastaria para induzir a nostalgia. A degradação é real, meus senhores e minhas senhoras, muito real e concreta. Mais assustador ainda é observar que ela atravessa todas as classes sociais, níveis etários e de instrução: veja-se o caso do desaparecimento da conjugação pronominal («vou dizer a ela» em vez de «vou dizer-lhe»).
9. Compreendo os argumentos relativos à importância de alçar a língua portuguesa a um plano internacional e, nesse plano, a necessidade de articulação entre as variantes existentes. Mas tudo isso não tem sentido se em Portugal não se perceber bem o que é isso do português, disciplina cada vez mais odiada nas escolas, e não se lhe atribuir uma importância acima da ordem da mera aquisição de conhecimentos.
10. Se não for por uma razão identitária, porquê continuar a falar português?
 
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